A pandemia do coronavírus Covid-19 tem atuado como catalisadora de processos organizacionais evolutivos na Administração Pública brasileira, como aqueles relacionados à incorporação de tecnologia da informação do cotidiano do serviço público, gerando impacto direto na forma como atuam os compradores públicos.
No contexto de enfrentamento da crise, foram adotadas estratégias de trabalho remoto para um contingente expressivo de profissionais de diversas áreas, uma medida essencial para evitar um colapso organizacional em uma possível contaminação em massa dos colaboradores. No entanto, essas estratégias somente se tornaram viáveis em razão de processos de desenvolvimento de plataformas digitais para execução dos processos de trabalho, que certamente foram acelerados para garantir os meios para um homework funcional.
Essa reflexão é especialmente importante na área das compras públicas, considerando o elevado nível de exigências de instrução processual e documental, típico de um processo de aquisição com recursos públicos, herdado de um arcabouço normativo ainda marcado por uma trajetória de baixa profissionalização no tema.
Assim, como modo de permitir a continuidade das atividades desempenhadas pelos compradores, e sua intensificação no caso de alguns setores diretamente afetados pela pandemia, as ferramentas digitais tiveram seu uso ampliado e têm se mostrado um pilar fundamental para o enfrentamento da crise. Três exemplos podem ilustrar esse cenário: os sistemas eletrônicos de compras, as ferramentas de gestão de processos eletrônicos e as plataformas de interação.
Sistemas eletrônicos de compras
O Brasil é mundialmente conhecido por suas iniciativas de incorporação de tecnologia da informação nas compras públicas, aspecto importante na promoção da transparência e dos princípios competitivos nas aquisições governamentais. A ferramenta ComprasNet, uma plataforma de compras públicas ofertada pelo Governo Federal, tem sido largamente utilizada, com adoção inclusive por governos estaduais e municipais. Serve ainda como inspiração para o desenvolvimento de ferramentas próprias desses entes, muitas com bastante expressividade, como a Bolsa Eletrônica de Compras do Estado de São Paulo.
No contexto da pandemia, as ações de expansão do uso de sistemas eletrônicos para as compras públicas têm sido expressivas, algumas com fortuitas coincidências. Os repasses federais de recursos para entes subnacionais estavam previstos para ocorrer, a partir de meados de 2020, somente caso as compras fossem efetivadas por plataforma eletrônica, coincidindo com a necessidade de digitalizar os processos para o home office funcionar.
O próprio ComprasNet, com regras atualizadas de pregão eletrônico, está sendo expandido para englobar fases da compra que não possuíam o mesmo nível de transparência e automatização da fase competitiva: é o caso do planejamento das compras e da gestão dos contratos. Os módulos Estudo Técnico Preliminar - ETP Digital e ComprasNet-Contratos exemplificam essa dinâmica.
Além disso, aproveitando o momento digital, está efervescente o debate sobre o desenvolvimento de mercados eletrônicos de compras governamentais, tanto no Governo Federal quanto nos entes subnacionais. Inspiradas nos marketplace difundidos internacionalmente, com experiências exitosas em países como Itália e Chile, essas ferramentas representam um próximo passo nas compras públicas brasileiras, podendo contribuir não somente com o enfrentamento da crise da Covid-19, mas com uma evolução completa das formas de contratação governamental.
Gestão de Processos Eletrônicos
Ainda que os sistemas eletrônicos de compras atualmente disponíveis estejam em expansão, boa parte dos atos praticados pelos compradores públicos geram documentos utilizados na instrução de processos administrativos. Esses processos contam as histórias por trás das compras: trazem, idealmente, as motivações das decisões tomadas e demonstram que os atores envolvidos estiveram sempre no interesse público em suas ações.
A manutenção da instrução física de processos tornaria impraticável o trabalho remoto em época de pandemia. Os governos adotaram, nos últimos anos, políticas de automatização e de gestão eletrônica de processos, permitindo esse cenário atual de viabilidade do trabalho a distância.
Como exemplo, o Governo Federal incentivou o uso do Sistema Eletrônico de Informações - SEI, plataforma de processos eletrônicos desenvolvida pelo Tribunal Regional Federal da 4a Região e adotada no âmbito do projeto denominado Processo Eletrônico Nacional - PEN. Esse trabalho, que remonta atividades iniciadas há quase 10 anos, tem se mostrado imprescindível para disponibilizar o ambiente digital no qual atuam os compradores da esfera federal, tanto para a produção quanto para a assinatura eletrônica dos documentos, e até mesmo para a tramitação do processo administrativo de contratação como um todo.
Nesse ponto, é importante frisar que a ubiquidade é uma característica do processo administrativo eletrônico que possibilita sua tramitação por mais de uma área ou equipe distintas, ao mesmo tempo. Com isso, torna-se possível otimizar o fluxo do processo, realizando de forma concomitante diversas etapas.
Há evoluções importantes em curso nesse projeto, como a recente disseminação do chamado Barramento PEN, funcionalidade que permite a comunicação entre órgãos públicos que utilizam sistemas de gestão de processos eletrônicos, não necessariamente o SEI. Essa dinâmica digital facilita o contato formal entre os órgãos públicos sem o deslocamento de colaboradores, imprimindo agilidade na formalização de parcerias intragovernamentais, como compras centralizadas, realizadas de forma conjunta entre organizações.
Há ainda a perspectiva de ampliação de uma iniciativa importante de protocolo digital, que vem aproximando os cidadãos dos órgãos públicos que a implantaram, pois permite a entrada de documentos na organização sem a necessidade de presença física. Essa funcionalidade facilita a interlocução com o público em geral, e certamente auxilia no envio de documentos pelos fornecedores, por exemplo, contribuindo para uma maior celeridade nas compras.
Contato com o mercado fornecedor
Uma das dinâmicas facilitadas pela incorporação de tecnologia da informação durante o enfrentamento da crise do Covid-19 é a interação entre os compradores públicos e o mercado fornecedor.
Com o amadurecimento das políticas de compras governamentais, verifica-se a tendência de aproximação do setor público com os parceiros privados, buscando diálogos para construção de soluções, bem como uma gestão de fornecedores mais próxima.
Nesse contexto, o uso ampliado de ferramentas digitais tem se mostrado relevante, como pode ser visto nas conferências e audiências públicas remotas, além dos seminários eletrônicos/webinars abertos ao público interessado. Na temática das compras, especificamente no Governo Federal, há diversas iniciativas nesse sentido capitaneadas pelo órgão central supervisor do tema, apresentando proposições e visando construir de forma colaborativa as boas práticas nas contratações.
Destacam-se também as reuniões com fornecedores realizadas por videoconferência pelos compradores públicos, que aproximam as partes na busca por soluções conjuntas. Como o princípio da transparência dos atos praticados pelos compradores públicos é prioritário, a oportunidade de gravar as reuniões e juntar esse registro nos processos eletrônicos se apresenta como ganho importante na evolução das dinâmicas de interação com os parceiros.
Perspectivas e trilhas a serem percorridas
Diante do desafio de manter e ampliar a atuação das compras públicas durante a pandemia mundial da Covid-19, verifica-se um incremento no uso da tecnologia da informação como aliada dos compradores, permitindo a racionalização dos processos e do próprio custeio da máquina administrativa.
É interessante destacar que boa parte da tecnologia que hoje está disseminada já estava disponível, mas possivelmente a dependência da trajetória institucional não permitia seu devido usufruto por algumas organizações públicas. Espera-se, inclusive, que as práticas ágeis e dinâmicas desse momento digital sejam incorporadas em definitivo nesses organizações, como uma espécie de legado do cenário complexo atualmente vivenciado.
Isso se faz ainda mais necessário no ambiente das compras públicas, no qual a papelada burocrática está dando espaço para a adoção de técnicas de strategic sourcing, agregando inteligência de compras e alternando o papel dos compradores. A substituição do papel do comprador público, que antes atuava como um "carimbador oficial" e agora passa a ser um pilar na entrega de resultados efetivos nas organizações, é fundamental para que as compras atinjam seu objetivo final no Estado: atuem como instrumento de implementação de políticas públicas.
Texto gentilmente escrito pelo Felippe Vilaça Loureiro Santos para o Café com Comprador.
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